Vacina de Oxford: voluntário brasileiro morre, mas laboratório não informa se ele recebeu imunizante

Anvisa foi notificada sobre morte de médico de 28 anos; comitê recomendou prosseguimento dos estudos e investigações continuam
O médico João Pedro Rodrigues Feitosa, de 28 anos, voluntário do ensaio clínico da vacina de Oxford e vítima da Covid-19 Foto: Reprodução / Redes sociais
O médico João Pedro Rodrigues Feitosa, de 28 anos, voluntário do ensaio clínico da vacina de Oxford e vítima da Covid-19 Foto: Reprodução / Redes sociais

BRASÍLIA e RIO — Um voluntário brasileiro que participava dos testes clínicos da vacina desenvolvida pela Universidade Oxford e pelo laboratório AstraZeneca morreu devido a complicações de Covid-19, na última quinta-feira. A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) foi formalmente informada do fato nesta segunda-feira (19). O voluntário era o médico João Pedro Rodrigues Feitosa, de 28 anos. A reportagem apurou junto a fontes ligadas ao estudo internacional e que não se identificam em função de obrigações legais que o voluntário não recebeu a dose da vacina e sim a substância usada como placebo. Porém,  por conta do sigilio legal, nem o laboratório nem os centros responsáveis pelos testes nem a Anvisa informam oficialmente se o voluntário recebeu o placebo ou não.

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De acordo com a Anvisa, os desenvolvedores da vacina já compartilharam com a agência os dados da investigação realizada pelo Comitê Internacional de Avaliação de Segurança sobre o caso. A Anvisa informou ao GLOBO que o caso está sob avaliação.

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Segundo a Anvisa, o Comitê Internacional sugeriu o prosseguimento dos estudos com a vacina.

Em nota, a Anvisa informou ainda que “com base nos compromissos de confidencialidade ética previstos no protocolo, as agências reguladoras envolvidas recebem dados parciais referentes à investigação realizada por esse comitê, que sugeriu pelo prosseguimento do estudo. Assim, o processo permanece em avaliação”.

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A Anvisa ainda afirmou que os dados de voluntários são mantidos em sigilo devido aos princípios de confidencialidade do estudo, destacando que “a Agência cumpriu, cumpre e cumprirá a sua missão institucional de proteger a saúde da população brasileira”.

Após reunião com senadores e o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), o diretor-presidente da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, Antonio Barra, lamentou a morte do médico João Pedro, naquele momento ainda não identificado. Ele disse, entretanto, que não poderia dar mais detalhes sobre as circunstância do caso devido a cláusula de confidencialidade.

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— Em relação ao desenvolvimento vacinal, cujo protocolo tem entre seus signatários esta agência, está prevista uma confidencialidade ética em relação a tudo que envolve os voluntários de testes. Daí a escassez, neste momento, de maiores detalhes — disse Barra. — No dia 19 de outubro tivemos a comunicação oficial, como reza o protocolo, do comitê internacional independente relatando o ocorrido e relatando, ao mesmo tempo, a possibilidade de prosseguimento dos estudos, diferentemente da interrupção anterior. De posse dessa informação, ela permanece em contínua análise e, no momento, os testes prosseguem.

Testes estão mantidos

Em nota, o responsável pelos testes no Rio de Janeiro, o Instituto D’Or de Pesquisa e Ensino (Idor), informa que “seguindo normas internacionais de pesquisa clínica e respeitando os critérios de confidencialidade dos dados médicos, não podemos confirmar publicamente a participação de nenhum voluntário no estudo clínico com a vacina de Oxford".

O instituto ressalta, ainda, que "após a inclusão de mais de 20 mil participantes nos testes ao redor do mundo, todas as condições médicas registradas foram cuidadosamente avaliadas pelo comitê independente de segurança, pelas equipes de investigadores e autoridades regulatórias locais e internacionais. A análise rigorosa dos dados colhidos até o momento não trouxe qualquer dúvida com relação à segurança do estudo, recomenda-se sua continuidade. Vale lembrar que se trata de um estudo randomizado e cego, no qual 50% dos voluntários recebem o imunizante produzido por Oxford. No Brasil, até o presente momento, já foram vacinados aproximadamente 8 mil voluntários.”

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Sue Ann Costa Clemens, chefe do Instituto de Saúde Global da Universidade de Siena (Itália) e pesquisadora do Instituto D’Or de Pesquisa e Ensino, explica que pesquisas só devem ser interrompidas se houver alguma ocorrência inesperada, como no caso, revelado em setembro, do voluntário britânico com suspeita de esclerose transversa. Na ocasião, o estudo foi mundialmente interrompido. E retomado, quando se constatou que não teve a ver com a vacina. 

Segundo ela, contrair Covid-19 durante testes de uma vacina justamente contra a Covid-19 num momento de pandemia não é um evento inesperado e sim um fator de avaliação.

Em nota, a Universidade de Oxford ressaltou que os incidentes com participantes do grupo controle são revisados por um comitê independente e que a "análise cuidadosa" não trouxe preocupações sobre a segurança do ensaio clínico.

Médico estava na linha de frente

O médico João Pedro Rodrigues Feitosa desde março estava na linha de frente do atendimento a doentes de Covid-19, em UTIs e emergências. Ele trabalhava num hospital privado e em outro da rede municipal, ambos na Zona Norte do Rio.

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Ex-aluno de medicina e muito querido na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), onde se formou em 2019, ele era conhecido pela dedicação e o trabalho incansável. Nesta semana, a instituição postou em suas redes sociais uma homenagem em sua memória. Amigos contam que estava sempre disposto a ajudar os outros e não perdia o bom humor.

Feitosa era também um lutador. De origem humilde, foi bolsista-monitor durante todo curso de graduação porque precisava de ajuda financeira para se manter. Durante a faculdade, morava em Olaria mas, quando se formou, se mudou-se para a Lagoa e ganhou, segundo o grupo de recém-formados, R$ 40 mil em um único mês trabalhando exaustivamente, inclusive dobrando plantões. De acordo com os amigos, a luta pela sobrevivência o fez aprender rápido e trabalhar muito. Ele foi o primeiro de sua turma a tirar o reigstro no Conselho Regional de Medicina (CRM).

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Sua morte surpreendeu e chocou os mais próximos pois o médico, segundo eles, tinha boa saúde e não sofria de qualquer comorbidade. Ele teria recebido a dose de uma substância parte do estudo clínico da AstraZeneca/Oxford no fim de julho. O médico adoeceu em setembro e seu quadro se agravou até vir a falecer.

Chamada AZD1222, a vacina da AstraZeneca/Universidade de Oxford é feita com um adenovírus símio geneticamente modificado. O adenovírus funciona como “transporte” para uma proteína do Sars-Cov-2, a chamada proteína espícula, ou S, que o coronavírus usa para invadir as células humanas. 

Esse tipo de plataforma, considerado inovador e promissor, nunca foi usado antes em vacinas no mercado. Estudos com a mesma estratégia — e vírus diferentes —  fracassaram contra o HIV. 

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A estratégia agora é usar o adenovírus, que também foi alterado para não se replicar, para “apresentar” o coronavírus ao sistema de defesa humano que, então, produziria anticorpos para atacar a proteína S. Porém, como não tem o coronavírus inteiro, a vacina não é capaz de causar a Covid-19, o que aumentaria a segurança.

Possíveis causas da morte

Especialistas dizem que existem, em tese, três possibilidades para explicar a morte de Feitosa. A primeira é que ele pertencia ao grupo placebo, aquele que recebeu uma vacina de meningite e não o imunizante contra a Covid-19. Como os estudos são  conduzidos no formato “duplo cego”, para garantir a idoneidade dos dados, nem pacientes nem cientistas sabem quem tomou o quê. Essas informações são mantidas em um sistema fechado. Só dessa forma é possível saber se, de fato, a vacina protegeu alguém.

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Uma segunda possibilidade é que ele tenha tomado uma dose, mas esta não tenha sido suficiente para protegê-lo do desenvolvimento da Covid-19. Uma segunda dose estava sendo administrada nos voluntários justamente porque estudos mostraram que duas aplicações proporcionavam uma resposta mais robusta do sistema de defesa. Não está claro se o voluntário morto tomou uma segunda dose.

A terceira hipótese é que ele não foi protegido e a Covid-19 tenha sido agravada por um fenômeno conhecido como amplificação dependente de anticorpos (ADE). Esse é um fenômeno que pode ocorrer em algumas infecções virais. Nele, anticorpos podem intensificar os efeitos da doença, ao invés de reduzí-los.

O caso mais conhecido de ADE ocorre com a dengue. A dengue hemorrágica, a forma grave e por vezes letal, acomete quem já teve dengue antes. É por isso que a vacina da dengue é recomendada apenas a quem já teve alguma vez a doença, que pode ser causada por quatro subtipos do vírus.

Comunicado da Unifesp

No início da noite desta quarta-feira, a Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), que coordena os testes clínicos da vacina de Oxford no Brasil, distribuiu um comunicado à imprensa.

"A análise cuidadosa deste caso no Brasil, não trouxe dúvida quanto à segurança do estudo clínico em curso. A revisão do comitê  independente e as agências regulatórias brasileiras recomendam que o estudo deve continuar", afirmou a instituição. "A universidade se solidariza com a família (da vítima) nesse momento de perda."

Segundo a Unifesp, mais de 8.000 voluntários receberam a vacina até agora no contexto do estudo brasileiro, sem grandes percalços. "Tudo avança como o esperado, sem ter havido qualquer registro de intercorrências graves relacionadas a vacina envolvendo qualquer um dos voluntários participantes", diz o comunicado.

Colaboraram Bruno Góes e Rafael Garcia